Arquitetura é o pensamento de espaços? É ciência e arte aplicadas aos lugares? E se alguém dissesse que arquitetura é projetar tempos?
O livro — Segundo Ulisses Carrión em “El arte nuevo de hacer libros” (CARRIÓN, 2012), um livro é muito mais do que o suporte pacífico para um texto; um livro é uma sequência espaço-temporal autônoma. Para criá-lo é preciso dispor com consciência os signos nos espaços de suas páginas. É preciso entender seu mecanismo e utilizá-lo a seu favor. Criar um livro é estruturar um mundo novo. Definir as leis da física. Estipular a passagem do tempo em cada momento: capítulos que passam mais devagar, capítulos mais apressados; momentos densos e momentos de respiro.
Este ensaio nasceu como um livro e, nessa arte nova de fazê-lo, conteúdo e forma são indissociáveis. Aqui e agora, parte desse conteúdo busca novas formas, em uma tradução que é tanto falha quanto criadora de algo novo. Surgem novas leituras e novos tempos.
O tempo
[...] o tempo linear é uma invenção do Ocidente, o tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado onde, a qualquer instante, podem ser escolhidos pontos e inventadas soluções, sem começo nem fim. — Lina Bo Bardi. In: Marcelo Carvalho Ferraz. Lina Bo Bardi, 1993.
Desde a teoria da relatividade, publicada em 1905 por Albert Einstein, a física entende o tempo como integrado ao espaço, formando uma variável única que viemos a chamar de espaço-tempo. Este espaço-tempo é um sistema de 4 coordenadas (t, x, y, z) no qual inserem-se os acontecimentos, que nada mais são do que pontos dentro desse sistema. Um acontecimento está locado, portanto, nestas coordenadas do espaço-tempo. Se tempo e espaço são forças físicas interdependentes e indissociáveis, talvez seja possível pensar que a relação do ser humano com o tempo seja também arquitetura.
Na teoria de Einstein, o tempo é variável e depende de fatores como a gravidade, o espaço e a velocidade, portanto: o tempo não é igual para todos; e pode passar mais devagar para alguns e mais rápido para outros. Fora dos limites da ciência, no que diz respeito a nossa percepção, nosso entendimento e nossa forma de lidar com o tempo, há também diversidade.
A concepção de tempo é uma construção cultural formada por nossas sociedades, através de conceitos, valores, tecnologias e todas as nossas formas múltiplas de ver e viver o mundo. Esses diferentes modos de perceber e lidar com o tempo, refletem-se em nossos espaços, nas cidades e arquiteturas.
[na representação temporal judaica] o tempo flui sobre uma linha reta que avança do começo para o fim e com uma forte natureza direcional. — Shuichi Kato. Tempo e espaço na cultura japonesa, 2012.
A consciência histórica do Brasil, assim como a da maioria das sociedades ocidentais com herança europeia, originou-se deste tempo judaico-cristão descrito por Kato. É o tempo linear e cronológico, que sempre ruma a algum tipo de “progresso”, uma seta em direção ao futuro. De certa forma, isso gerou a ideia de projeto. Não apenas espaços projetados, mas espaços que projetam. Espaços de constante: desenvolvimento, crescimento, desdobramento, elevação, evolução, ascensão, progresso, avanço, prosperidade.
Esse tipo de movimento só é possível com a criação de uma direção e de um referencial de partida, a definição de algo que está atrás; e da conotação negativa das palavras “atrás”, “abaixo”, “inferior”. Essas expressões refletem como o entendimento do tempo-espaço vetorizado permeia todos os níveis de nossas relações sociais ocidentais, até a gramática, o vocabulário e as metáforas.
Montados nessa seta, construímos e reconstruímos nossas grandes arquiteturas sempre com o material mais novo, a tecnologia mais avançada, esperando grandes coisas para o futuro. No mesmo anseio pela escalada constante, a seta se torna homogeneizante de tempos e espaços; atravessa subjetividades em uma ação devastadora dos pensamentos outros que não os que a deram vida.
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. — Ailton Krenak. Ideias para adiar o fim do mundo, 2019.
Mas nesse mesmo território de limites inventados, que chamamos Brasil, mesclam-se outros tempos. No vocabulário dos indígenas Munduruku, por exemplo, não existe a palavra “futuro”, para eles o tempo é aquele que podemos “ver”: o passado e o presente. Não projetam suas vidas para um futuro brilhante, vivem aqui e agora (MUNDURUKU). Ainda no mesmo continente, os Aimarás, entendem a existência do futuro como o tempo que está atrás de nós, e por isso não o vemos, enquanto o passado, esse conjunto de imagens, ensinamentos e experiências vividas, está à nossa frente (BAROSSI, 2019).
Os povos indígenas dependem da natureza, da terra, da floresta, de uma forma muito mais direta do que nós, povos das cidades. Para eles, o tempo cíclico dos astros e das estações é muito mais evidente e influencia diretamente em seu modo de vida. Essa forma de lidar com o tempo desenha arquiteturas e organizações espaciais específicas. Influencia tanto na forma e materialidade dos espaços quanto em sua relação com as pessoas. As casas coletivas Yanomami, de madeira cipó e palha, por exemplo, são habitadas e depois abandonadas; antes de seguirem a um novo local, seus moradores as queimam ou simplesmente confiam sua reciclagem à floresta e ao tempo.
Assim como encontramos diferentes noções temporais sobrepostas em um mesmo espaço, é possível observar afinidades de pensamento em locais completamente distantes. Do outro lado do planeta, esse limite objetivo e nada inventado, criou-se o renga. Este é uma forma poética coletiva nascida no Japão do séc. XV. Nela, cada poeta cria uma estrofe curta, apenas se preocupando com aquela escrita imediatamente antes; sem planejar uma continuação e também sem pensar no que havia sido escrito antes da estrofe conectada. Assim como na rotina Munduruku, no renga japonês, o tempo é o agora=aqui.
O fluir do renga não é planejado de antemão, ele segue conforme as ideias que surgem no momento, ora mudando-se o tema, ora o cenário, ora a emotividade. [...] A graça é concluída no presente, e não se liga nem ao passado nem ao futuro. O renga é o estilo literário que vive no 'agora=aqui', no qual o passado é enterrado, e o amanhã é confiado ao novo dia. — Shuichi Kato. Tempo e espaço na cultura japonesa, 2012.
Retomando a ideia de indissociabilidade entre tempo e espaço, talvez seja significativo o renga ter nascido em uma ilha. Segundo o arquiteto Arata Isozaki a espacialidade japonesa cercada por água, um pedaço de terra no meio do nada, influencia na cultura e forma de pensar daquele lugar. O renga é poesia de momentos, em que as partes são mais importantes do que o todo, e as transições e o vazio tem importância fundamental.
É nesse país, cuja fronteira é o vazio, que surge o conceito MA, de tempo-espaço. Segundo Michiko Okano, o MA é uma forma estética, e não um conceito, uma vez que não é passível de tradução. Desta forma, definir o que seja o MA é tarefa complexa que excede os limites e ambições deste livro; basta dizer que existem muitas formas de se falar sobre o MA. Podemos locar sua origem em um mito de criação do universo: o Hiromoji, que foi o momento e o espaço no qual as divindades (kami) desceram para a Terra. MA é esse momento e espaço no qual há a possibilidade de conexão com o divino. Outra leitura possível para essa forma estética é o Utsuroi: o processo de mudança. A relação do tempo com a natureza (SINZATO, 2015). Roland Barthes em seu texto “Intervalle” define Utsuroi como:
[...] o momento em que a flor vai murchar, em que a alma de uma coisa está como que suspensa no vazio, entre dois estados. — Roland Barthes. A preparação do romance, 2005.
Assim, nós podemos entender o MA como o momento-entre, que é também espaço-entre. É o vazio como possibilidade; o vazio entre cheios é o que dá forma ao todo. Na arquitetura japonesa, os momentos de transição são essenciais: o engawa é o espaço nas casas tradicionais da transição entre externo e interno, público e privado; já o sandô representa, nos templos, a passagem do profano ao sagrado. E mesmo na produção contemporânea, podemos identificar elementos e conformações espaciais que trazem este modo de pensar.
A valorização do vazio pode parecer estranha pela perspectiva capitalista da produção ininterrupta de materiais e informações. Nessa lógica, o vazio é, frequentemente, um desperdício. Seja o vazio espacial, como os espaços residuais da planta “mal aproveitada” de um projeto arquitetônico, ou os vazios urbanos em sua luta por sobrevivência contra a força da especulação imobiliária; seja o vazio temporal, em uma rotina que se espera a mais produtiva possível. Mas a persistência de uma noção temporal como o MA, em uma sociedade que está inserida nessa lógica da produção e do capital, é a prova de que o pensamento dual é falho. Ao voltarmos essa mesma visão, em busca de multiplicidade, para um território ocidental como o Brasil, encontramos uma série de espacialidades em que o vazio ultrapassou a lógica do “aproveitamento máximo”, gerando relações urbanas singulares e potentes. Esplanadas, vãos arquitetônicos e janelas na paisagem, criam espaços de encontro e manifestações políticas essenciais ao exercício da cidadania.
À todas noções de tempo, em qualquer tempo-espaço, somam-se e embaralham-se muitas outras, de forma que tentativas de classificação, como quase sempre são, se tornam vagas e superficiais. Povos que vivem da agricultura ou do contato intenso com a natureza, tendem a valorizar a face cíclica do tempo. Enquanto os que se movem conforme as divisões manipuladas do relógio (horas, minutos e segundos), costumam cronometrar suas atividades em frações menores e independentes do movimento dos astros. Porém, mesmo para os primeiros, pode-se somar a estes tempos rotineiros, o tempo linear infinito dos acontecimentos históricos; ou ainda, a efemeridade da vida individual de um ser.
Assim como algumas visões de tempo, as relações de causa e consequência não seguem uma linearidade objetiva. Como definir o que veio antes e o que veio depois? Um povo pode observar o tempo como cíclico pois depende da natureza; ou, manter suas relações com a terra justamente por entender o tempo circular. Outro, pode pensá-lo como uma seta ao observar os eventos da História; ou, por considerar o tempo linear, se propõe a manter um registro dos acontecimentos históricos.
Pouco importa a este ensaio responder essas perguntas. Muito menos decifrar culturas, avaliar práticas ou analisar comparativamente visões. O que se pretende nessas frágeis combinações de palavras é deixar ressoar no tempo-espaço a liberdade de entendê-lo como for. É permitir a nossos olhares outra compreensão daquilo que já temos como dado. Para que talvez, ao enxergar novos tempos, enxerguemos novos espaços, seja naqueles que ainda criaremos seja nos que já estão aqui.
Este ensaio é parte do livro “Sete mundos d’água: histórias imaginadas sobre tempo-espaços reais” produzido em 2019 por Laura Tomiatti como Trabalho de Graduação para a Escola da Cidade e orientado por Joana Barossi. Seu conteúdo foi adaptado para a plataforma online e se encontra disponível em setemundosdagua.com.br. Laura Tomiatti é arquiteta e urbanista formada em 2019 pela Escola da Cidade - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Em 2018 estagiou na SANDWICH - Creative Platform for Contemporary Art, em Quioto. Atualmente trabalha no escritório Gui Paoliello Arquiteto.
Referências bibliográficas
- BAROSSI, Joana. Entrevista sobre palestra do escritor Alberto Manguel. Entrevistadora: Laura Tomiatti. São Paulo: Associação Escola da Cidade – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Entrevista concedida ao Trabalho de Conclusão Sete mundo d’água.
- CARRIÓN, Ulisses. El arte nuevo de hacer libros. Cidade do México: Tumbona Ediciones, 2012, p. 37-61.
- CRARY, Jonathan. 24/7: o capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu, 2016.
- ISOZAKI, Arata. Entrevista concedida ao PLANE-SITE para a exibição “Time-Space-Existence” na La Biennale di Venezia Architettura de 2018. Disponível em: <https://europeanculturalcentre.eu/publication/interviews>. Acesso em: 27 out. 2019.
- KATO, Shuichi. Tempo e espaço na cultura japonesa. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
- KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
- LIGHTMAN, Alan. Os Sonhos de Einstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
- MUNDURUKU, Daniel. Tempo, tempo, tempo. Disponível em: <https://historiasindigenas.files.wordpress.com/2017/08/3-daniel-munduruku.pdf>. Acesso em: 5 jun. 2019.
- OKANO, Michiko. MA: entre-espaço da comunicação no Japão - um estudo acerca dos diálogos entre Oriente e Ocidente. Tese (doutorado em comunicação semiótica) – PUC, SP. São Paulo, 2007.
- SINZATO, Yumi. MA, O Vazio Intervalar. Tese (mestrado em artes visuais) – UDESC. Santa Catarina, 2015.